26 de abril de 2024
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Somos todos iguais e excessivamente humanos


Aos olhos e sentimentos dos religiosos, aqueles que se filiam a uma religião e a partir dela traçam cartografias para suas vidas interior e pública, sempre paira uma sensação de conforto, de proteção, acompanhada de uma quase certeza (mesmo que não dita) de que, quem não tem um deus, uma fé como norte, estará sempre mais perdido, desbussolado.
VATICANO
Foram muitas as notícias, nenhuma delas bonita de se ler, que ao longo de 2018 falavam de religião. Como a gente aprende desde cedo nos manuais mais básicos de jornalismo, “good news is bad news”. E as bad news religiosas se sucederam. A epidemia de pedofilia nas altas hostes da Igreja Católica, em países de todos os continentes e até nos bastidores do Vaticano. O líder hindu que alinhava os chacras da alta burguesia paulistana e de celebridades que o reverenciavam se revelou um comedor de gente. Alinhava os chacras sexuais das mulheres usando suas próprias veias cavernosas e seus fluidos. Nada de mais, claro, se publicamente ele não professasse sua abstinência sexual há anos e se os maridos dessas mulheres soubessem do que se tratavam os tratamentos tântricos aos quais suas parceiras eram submetidas.
Nem bem Prem Baba abandonava as manchetes e tinha seu linchamento moral e virtual concluído, eis que entra em cena o lado diabólico de João de Deus, o médium curativo mais famoso do Brasil e estrela internacional. O caso de João, e só pelo que se sabe até agora, tornou o geneticista Roger Abdelmassih quase um réu reles, um abusador vulgar. João literalmente lidava com drogas muito mais pesadas. Do tráfico literal, passando por material radioativo, pedras preciosas e homicídios, abusar de mulheres de todas as idades e durante 40 anos parece ser um só mais um vício contra o qual o médium nunca lutou.
IALORIXÁ
Em Salvador, no crepúsculo de 2018, morre Mãe Stella de Oxóssi, uma das sacerdotisas mais respeitadas da história do candomblé no Brasil. As notícias sobre sua morte eram para ser exclusivamente relacionadas à perda e à comoção. Mas o que se viu logo após o anúncio da morte da ialorixá do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá foi um capítulo vulgar da história das religiões no país. Um escândalo. Em tradução simples, o que se viu foi uma briga por seu corpo morto, e que logo se tornou disputa judicial. Sua companheira, Graziela Domini Peixoto, decidira que a ialorixá seria velada na Câmara de Vereadores de Nazaré das Farinhas e enterrada no cemitério local.
Para quem desconhece os preceitos do candomblé, enterrar Stella de Oxóssi no cemitério de uma cidadezinha do interior e sem passar pelos rituais fúnebres do povo de santo é o mesmo que imaginar o Papa morrendo numa casinha do interior da Itália e sendo enterrado por lá mesmo, sem passar por todo aquele ritual, com pompa e circunstância, no Vaticano. E ironia com a religião dos outros não deveria estar valendo, mas a briga pelo corpo, para além da feiura em si, alimentou a boca maldita dos preconceitos, da intolerância religiosa e chegou virulenta ao capítulo da homofobia. Lendo coisas sobre a suposta posse de Graziela sobre o corpo de Mãe Stella, vendo a reação judicial dos filhos do Ilê Axé e a justiça intervindo e obrigando a realização dos rituais no terreiro, nunca entendi tão bem a exigência do celibato por parte da Igreja Católica.
ROMA
No final de tudo, duas lições. Com ou sem religião, fora ou dentro de qualquer uma delas, somos todos iguais. Sempre redutíveis ao que essencialmente somos, como Nietzsche escreveu melhor do que todo mundo: somos todos humanos, demasiadamente humanos. Outro aprendizado: é lindo repetir que Salvador é a Roma negra, que somos a maior cidade de pretos fora da África. Mas basta uma ialorixá respeitada morrer para descobrirmos que não sabemos nada de nada dos saberes negros. Há dias estamos descobrindo nos jornais o que é isso e o que é aquilo no candomblé. A vida, a morte, os nomes, os ritos. Há séculos estamos aqui e dificilmente alguém de nós não sabe o que é Natal, Finados, Páscoa. Mas moramos em Salvador, respeitamos a cultura negra e não sabemos o que é o axexê. Isso significa? Significa.
Fonte: Correio 24 horas

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