28 de março de 2024
Sergio Vaz

Mulheres Divinas / Die Göttliche Ordnung

De: Petra Volpe, Suíça, 2017

Nota: ★★★½

Deste Mulheres Divinas, produção suíça de 2017, dá para dizer o mesmo que eu disse sobre o inglês As Sufragistas/Suffragette, de 2015, que trata do mesmo tema: “É um daqueles filmes que são, além de belas obras de arte, também importantes documentos sobre episódios relevantes da História”.
As Sufragistas foi dirigido por uma jovem, Sarah Gravon. Mulheres Divinas também: Petra Biondina Volpe, a realizadora e também autora do argumento e do roteiro, nasceu em Suhr, Suíça, em 1970.
Pensei em botar um teste de conhecimentos gerais no início deste texto. Assim:
As mulheres adquiriram o direito de votar na Nova Zelândia em 1893; na Noruega, em 1913; nos Estados Unidos, em 1920; no Reino Unido, em 1928; no Brasil, em 1932. Na Suíça, Suíça, as mulheres puderam votar a partir de
a) 1908
b) 1918
c) 1937
d) 1971
É absolutamente inacreditável que na rica, desenvolvida, industrializada, moderna Suíça, essa espécie de centro mundial das finanças, sede de importantes organismos internacionais, as mulheres eram proibidas de votar até 1971!
1971! Vinte e seis anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Dois anos depois do festival de Woodstock, dois anos depois de o homem caminhar na Lua!
Já alguns anos após as grandes vitórias do feminismo ao longo da década de 1960!
As mulheres suíças só obtiveram o direito a votar em 1971, um ano após o nascimento da moça que dirigiu este filme! Apenas 4 anos antes de minha filha nascer!
Em 1971, as mulheres suíças só podiam trabalhar fora de casa com o consentimento dos maridos. Havia uma lei determinando isso.
Mulheres Divinas já começa contando esses fatos absurdos ao espectador.
É chocante.

Sequer era usual as mulheres usarem calça comprida no inverno suíço

Petra Volpe abre seu filme com imagens de telejornais daquele início de anos 70 – vemos Janis Joplin cantando, Woodstock, gigantescos protestos contra a Guerra do Vietnã, os Panteras Negras, passeatas feministas.
Uma voz suave de mulher – veremos depois que é de Nora, a protagonista da história, interpretada por Marie Leuenberger, na foto acima e ao centro na foto abaixo – reforça, em off, o que as imagens estão mostrando:
– “Woodstock, protestos de estudantes, hippies, Black Power, revolução sexual, liberação feminina. Em 1971, o mundo estava mudando.”
Corta, e vemos um plano geral de um vilarejo nevado, vilarejo de país muito rico, belas construções. Um letreiro especifica: “Suíça, 1971”.
– “Mas na nossa aldeia era como o tempo tivesse parado. Na nossa aldeia, não sentíamos nada das coisas que estavam acontecendo mundo afora.”
E então começa a história. Vemos um casal com dois meninos caminhando por aquele vilarejo suíço – da parte de fala alemã da Suíça, veremos. Os dois garotos, Max e Luki (Noe Krejcí e Finn Sutter), um de uns 9, 10 anos, o outro aí de uns 7, estão indo para a escola. O pai, Hans (Maximilian Simonischek), para o trabalho – veremos depois que ele trabalha fábrica de tamanho médio. Nora dá um beijo no marido e entrega para ele uma sacola – o almoço dele, obviamente. Em seguida, monta em sua biclicleta, e pedala por uma bela estrada, para fora do vilarejo, para a área rural.
Tudo está coberto de neve.
Nora, mulher bonita – não uma boneca Barbie, uma modelo da Victoria Secret, uma atriz de Hollywood, mas bonita -, expressão boa no rosto, de gente de bem com a vida, pedala agasalhada, com lenço protegendo os cabelos, que aliás estão sempre presos. Mas usa saia: as pernas estão expostas ao vento gelado do inverno suíço.
É um detalhe importante. Mary reparou de imediato que é absurdo pedalar de saia num frio daqueles; retruquei de primeira que possivelmente calça comprida para mulheres não deveria ser bem aceito ali.
Mais tarde, quando Nora veste uma calça comprida, o sogro vai implicar com isso, fazer uma observação machista e conservadora sobre isso.

Sempre que pode, Nora ajuda a concunhada nos trabalhos da fazenda da família

Nora pedala até a fazenda da família do marido, que agora está sendo administrada pelo irmão mais velho dele, Werner (Nicholas Ofczarek), e sua mulher, Theresa (Rachel Braunschweig).
Nora e Theresa se dão muito bem, são amigas. Nora quando pode vai até a fazenda ajudar a concunhada nas suas muitas tarefas domésticas.
Naquele dia mostrado nesse inicinho da narrativa, Theresa conta que está tendo problemas com Hanna, a filha adolescente (interpretada por Ella Rumpf, jovem atriz belíssima). Hanna andava rebelde, não obedecendo às ordens de pai e mãe; namorava muito, andava tendo má fama na aldeia por causa disso, e agora estava namorando um sujeito cabeludo de Zurique que vinha pegá-la de moto. Theresa pede a Nora, que se dá bem com a garota, que converse com ela, tente fazer com que ele se comporte.
Aquela coisa absolutamente típica de conflito de gerações, algo milenar, mas que atingiu proporções amazônicas, jupiterianas, naqueles anos 60 e 70.
Veremos depois que a vida ali na fazenda não está nada boa. Werner detesta o trabalho na fazenda; quer vender parte da propriedade – apesar da oposição ferrenha do pai, Gottfried (Peter Freiburghaus), que não trabalha mais, não move uma palha, mora na aldeia na casa de Hans e Nora, mas esbraveja contra a intenção do filho mais velho de se desfazer da herança da família.
Werner anda triste, sem motivação, sem esperança, deprimido. Não toca mais na mulher. E a filha dos dois vive a rebeldia adolescente a todo vapor. Werner vai acabar – sem que Theresa tenha forças para se opor à decisão – mandando a garota Hanna para um internato severo, rígido.

O filme mostra a rica Suíça com costumes machistas quase medievais

É uma situação bem diferente da família de Nora e Hans. Os dois se dão bem, são carinhosos um com o outro, os dois garotos não dão problemas – claro, não chegaram ainda à adolescência. Nem mesmo a presença do pai de Hans na casa – um grande pentelho, um chato de galocha – tirava a paz do casal.
A situação vai mudar totalmente a partir do momento em que Nora se desperta para a necessidade de lutar pelo voto feminino – e pelos direitos das mulheres de maneira ampla, geral e irrestrita.
Como tudo acontece junto, como a vida vem em ondas com o mar, o despertar da consciência política e feminina de Nora vem junto com a vontade de voltar a trabalhar fora.
Quando ela fala com Hans que viu um anúncio de emprego e gostaria de se candidatar, o macho diz que não gostaria que as pessoas comentassem que ele não ganha o suficiente para sustentar a família. E lembra que há uma lei que dá razão a ele.
Nunca imaginei que na riquíssima Suíça houvesse leis tão absolutamente machistas em vigor até agora há pouco, até os anos 1970.
Com toda certeza não estávamos sozinhos nisso, Mary e eu. Seguramente a imensa maior parte das pessoas, mesmo as razoavelmente bem informadas como nós, também não fazia ideia disso, desse tamanho atraso no nível civilizatório da tão rica Suíça.
Mostrar ao mundo esse absurdo descompasso entre a imagem que se tem da Suíça, de país rico, desenvolvido, avançado, e essa realidade retrógrada, medieval, quase de país muçulmano, em relação aos direitos da mulher, seguramente foi uma das motivações da jovem Petra Biondina Volpe para realizar este filme.

Os que se opunham ao voto feminino dizia que essa era a vontade de Deus

Petra Biondina Volpe é uma mulher do mundo. Viveu e estudou na Suíça, na Alemanha, na Polônia, na Finlândia e nos Estados Unidos, onde se radicou. Este aqui foi seu segundo longa-metragem, após Traumland, em inglês Dreamland (2013), aparentemente não lançado no Brasil – um drama passado na véspera de Natal em Zurique, em que quatro pessoas se encontram, cada um por um motivo, com uma prostituta.
O site AlloCiné traz estas declarações da diretora sobre o filme que na França teve o título de Les Conquérantes, as conquistadoras:
“O direito de voto das mulheres é um dos capítulos mais sombrios da História suíça. Claro, todo mundo sabe, mas ninguém, nem na escola, nem na sociedade, fala verdadeiramente (do assunto), o que acontece muitas vezes na História das mulheres, sempre deixadas de lado. Eu quis fazer uma homenagem àquelas mulheres que lutaram com ardor durante mais de cem anos para obter o direto de votar e descrever aquela opressão em que elas viviam, dia após dia. A mensagem que eu quis passar é que é preciso continuar a ter coragem cívica e lutar pela igualdade.”
Les Conquérantes na França, Mulheres Divinas no Brasil. O título do filme em inglês, The Divine Order, e o escolhido pelos exibidores portugueses, A Ordem Divina, é que são os certos, a tradução literal do original alemão Die Göttliche Ordnung. A autora e diretora falou sobre o título em entrevista transcrita no site AlloCiné:
“O título original vem de um termo recorrente na propaganda contra o voto feminino, que afirma que a inclusão das mulheres na vida política ia contra a vontade de Deus.”
É o que eu digo sempre: as religiões não têm culpa das besteiras que as pessoas falam em nome delas. O problema não são as religiões – são as pessoas que distorcem os preceitos religiosos.

A luta pelos direitos das mulheres não significa guerra mulheres versus homens

Há no filme uma sequência em que um ministro religioso fala essa coisa de que o voto feminino vai contra a vontade de Deus. A personagem central da história, essa maravilhosa Nora, não leva o desaforo para casa, e faz uma beleza de réplica a essa afirmação absurda.
Num outro momento, também já para perto do fim da narrativa, o sogro de Nora, o chato de galocha do pai de Hans, começa a falar: – “No meu tempo…”
E então Hans responde com absoluto brilho ao pai neandertal:
– “O seu tempo passou – ainda bem!”
A construção desse personagem Hans, o marido da protagonista Nora, é uma das grandes, das maiores qualidades deste belo filme. Uma das mais impressionantes demonstrações de talento – e de maturidade – dessa diretora nascida em 1970.
Hans não é um sujeito ruim, um mau caráter. Mary notou e comentou isso quando o filme ainda estava pela primeira metade. Não é um machista troglodita. Como todas as pessoas, é um produto do meio, e então ele a princípio defendia os costumes machistas milenares. Não os contestava.
Fica absolutamente perplexo, perdido, quando a mulher, que jamais havia pensado em direitos femininos, em nada disso, transforma-se de repente em uma líder da luta pelo direito do voto das mulheres, pelo direito de trabalhar fora sem o consentimento do marido, pelo sagrado direito a ter orgasmo, diacho, porque tudo anda junto, e a vida vem em ondas como o mar, repito.
Hans sofre com toda aquela mudança inesperada. Mudança sempre causa estremecimento, atropelo, algum sofrimento. Mas os ventos da mudança não transformam Hans em um machista mais machista que antes. Ele não reage com fogo contra o fogo – ao contrário do que ocorre com muita gente.
Ao contrário.
Petra Biondina Volpe teve a sabedoria de mostrar que a luta pelos direitos das mulheres não significa guerra mulheres versus homens. Que garantir os direitos das mulheres não significa diminuir os direitos dos homens.
Mais ainda, muito mais: não deve haver uma luta homens x mulheres, mulheres x homens.
Não é por aí.
O certo é homens e mulheres juntos versus a opressão de um dos gêneros.
O certo é homens e mulheres iguais – em relação a direitos, deveres, tudo.
O certo é homens e mulheres gozarem juntos o prazer de serem iguais.
Aaaaannnh… Mulheres, homens, gays, lésbicas, trans, o cacete a quatro. Todos os tipos de gemte, a opção que for, que isso é o que menos importa: o que importa é que sejamos todos iguais nesta noite, como manda a canção do Ivan.
Essa moça Petra Biondina Volpe encerra seu filme com uma bela elegia ao prazer.
O prazer de igual para igual, ah, esse é seguramente, certamente, muito mais prazeroso do que o prazer de um que manda e outro que obedece.
Que me perdoem os doidos.

Anotação em junho de 2018

Mulheres Divinas/Die Göttliche Ordnung
De Petra Volpe, Suíça, 2017
Com Marie Leuenberger (Nora)
e Maximilian Simonischek (Hans, o marido de Nora), Rachel Braunschweig (Theresa, a concunhada de Nora), Sibylle Brunner (Vroni, a amiga), Marta Zoffoli (Graziella, a nova amiga), Bettina Stucky (Magda, a filha de Vroni), Noe Krejcí (Max, filho de Nora), Finn Sutter (Luki, filho de Nora), Peter Freiburghaus (Gottfried, o pai de Hans e Werner), Therese Affolter (Dra. Charlotte Wipf), Ella Rumpf (Hanna, a filha de Theresa), Nicholas Ofczarek (Werner, o marido de Theresa), Sofia Helin (Eden), Elias Arens (Küde), Mirjam Zbinden (Trudi)
Argumento e roteiro Petra Volpe
Fotografia Judith Kaufmann
Música Annette Focks
Montagem
Hansjörg Weißbrich
Casting Corinna Glaus e Ruth Hirschfeld
Cor, 96 min (1h36)
Produção Zodiac Pictures.
***1/2
Título em inglês: The Divine Order. Em Portugal: A Ordem Divina. Na França: Les Conquérantes.

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