29 de março de 2024
Sergio Vaz

Negação / Denial

De: Mick Jackson, Inglaterra-EUA, 2016
Nota: ★★★☆
Negação/Denial, co-produção Inglaterra-EUA de 2016, é um daqueles belos filmes que relatam episódios reais importantes, que deveriam ser conhecidos pelo maior número possível de pessoas. Um daqueles filmes que são bom cinema e ao mesmo tempo são necessários.
Relata, conta, encena, reproduz fatos bem recentes – a ação se passa entre 1994 e 2000. É, repito, um episódio importante – mas nem todo mundo tomou conhecimento dele, ou soube mais do que as manchetes dos jornais. (Eu me considero uma pessoa razoavelmente bem informada, mas não sabia dessa história. Mary, idem ibidem.)
O tema amplo é a negação de um fato histórico e/ou científico por uma pessoa e/ou grupo radical, fanático, tresloucado. Poderia ser, por exemplo, a negação de que a Terra é redonda – e isso é até citado nos diálogos afiados, inteligentes, fortes do filme. Ou a negação de que o ser humano é o produto de um processo evolutivo da natureza. Ou a negação de que alguns homens pisaram na superfície de Lua, e depois voltaram para este planetinha xucro aqui e contaram a história.
Poderia até ser, por exemplo, a negação de que o Plano Real foi criado por aqueles que todas as pessoas sãs, conscientes, sabem quem são, exceto um grupo de radicais, fanáticos, tresloucados. Ou a negação de que tenha havido uma ditadura militar no Brasil a partir de 1964, como foi defendido por outro grupo de radicais, fanáticos, tresloucados, na campanha eleitoral de 2018.
Poderia ser a negação de que Elvis morreu.
Elvis é citado várias vezes no filme. É uma brincadeira, mas também é algo sério: houve, e talvez ainda haja, uma legião bastante ampla de gente que garante que Elvis não morreu.
Especificamente, o tema o do filme é a negação de que o regime nazista tenha assassinado milhões de judeus nos campos de concentração. A negação do Holocausto.
No ano 2000, em Londres, houve um longo julgamento em que a questão, no final das contas, era esta: se o Holocausto existiu, ou não.
Esse julgamento, e seus antecedentes, é o que o filme reconstitui.

Não é um filme “objetivo”, “imparcial”, de forma alguma. Ele toma partido

E é fundamental que se deixe claro: Denial não é um filme que pretenda ser “objetivo”, “imparcial!”. Que relate os fatos de maneira dkistanciada, sem nem de longe tomar partido. Claro que não, felizmente que não: é um filme decidida, definidamente a favor da verdade, da História, e contra os radicais, fanáticos, tresloucados que negam fatos incontestes, irrefutáveis.
O roteiro foi escrito por David Hare, veterano dramaturgo, roteirista e diretor, nascido no interior da Inglaterra em 1947 – apenas 2 anos após os aliados terem encontrado os campos de extermínio nazistas, ao final da Segunda Guerra Mundial. Entre seus trabalhos está o roteiro de outro filme que trata da Segunda Guerra e dos crimes nazistas contra milhões de judeus, O Leitor (2008), baseado no belo livro do alemão Bernhard Schlink.
David Hare baseou seu roteiro no livro History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier, A História em julgamento: meu dia na corte com um negador do holocausto, escrito pela historiadora americana Deborah E. Lipstadt. Deborah Lipstadt foi a ré no processo na mais alta corte de Justiça do Reino Unido – e, no filme, é interpretada por Rachel Weisz. Os dois principais advogados ingleses que a defenderam, Richard Rampton e Anthony Julius são os primeiros nomes na lista de agradecimentos dos produtores, nos créditos finais. (Eles são representados, respectivamente, por Tom Wilkinson, esse monstro, e por Andrew Scott.)
Nada de postura imparcial, portanto. O filme se baseia no relato da ré, e a produção teve a colaboração dos advogados que a defenderam.

Um homem que se notabilizou por aparecer na mídia negando o Holocausto

O roteiro de David Hare segue rigorosamente a ordem cronológica dos acontecimentos – e o diretor Mick Jackson, outro inglês, outro veterano, facilita a vida do espectador colocando, sempre que necessário, letreiros informando o local e o ano em que se passam os fatos mostrados na tela.
A primeira sequência acontece em Atlanta, Georgia, em 1994: Deborah Lipstadt está dando uma aula que apresenta exatamente o tipo de argumento usado pelas pessoas que insistem em negar a existência do Holocausto.
Logo depois, outra sequência mostra a jovem historiadora se preparando para dar uma palestra para uma platéia que lotada um grande auditório. A uma pergunta de um assistente sobre por que Deborah não costuma debater diretamente com pessoas que negam o Holocausto, ela responde que não debateria também com os que defendem que a Terra é plana, ou que Elvis não morreu.
De repente, um homem se levanta e começa a apresentar seu espetáculo previamente ensaiado. É uma figura que Deborah conhece bem, que aparece muito na imprensa, que dedicou sua vida àquela missão, o Sr. Negação do Holocausto em Pessoa, o inglês David Irving – interpretado por outro gigante do cinema britânico das últimas décadas, Timothy Spall (na foto abaixo).
Autodidata, mas esforçadíssimo, tenaz, firme em seus propósitos, David Irving se apresentava ao mundo como historiador (embora não fosse reconhecido como tal pelos historiadores), especializado em estudos sobre o nazismo, biógrafo de Adolf Hitler.
Dá perfeitamente para o espectador perceber que foi um golpe armado com antecedência, com cuidadoso planejamento, por David Irving, que tinha ali, naquele auditório, uma pequena equipe paga para filmar tudo.
Ele contesta a existência da mortandade de judeus pelo regime nazista, e desafia Deborah Lipstadt a contestá-lo. Ela se mostra claramente surpreendida pela irrupção do homem ali em sua palestra. Nervosa, tensa, insiste em que não vai debater, que aquela é uma palestra dela, que ele vá fazer seu discurso, sua pregação, em outro lugar. Chama os seguranças – e seguranças chegam para tirar o homem que tumultua o ambiente do auditório.
Tudo o que David Irving queria.
Enquanto é retirado pelos seguranças, filmado pela equipe contratada por ele, faz o gesto teatral: tira um punhado de notas do bolso, e vai repetindo que dá US$ 10 mil, em dinheiro, na hora, para quem apresentar uma prova irrefutável de que tenha havido o Holocausto.

Na Inglaterra, cabe ao réu provar que não difamou

O episódio tem imensa repercussão na imprensa – tanto nos Estados Unidos, onde David Irving fez o seu circo, quanto na Inglaterra, seu país, onde era figura bastante conhecida dos jornais.
Passam-se uns poucos anos, e David Irving entra na Justiça inglesa contra Deborah Lipstadt e a editora de seus livros, a tradicionalíssima e britânica Penguin Books. Ele se diz difamado pela historiadora americana.
O filme não explica exatamente quem indicou quem, quem contactou quem – mas dá para inferir, claro, que houve aí alguma sugestão do departamento jurídico da Penguin. O fato é que Deborah Lipstadt recebe uma visita do advogado inglês Anthony Julius (o papel, repito, de Andrew Scott).
Cabe a ele explicar para Deborah – e também, claro, para o espectador – que a Justiça inglesa tem características bastante diferentes da americana. Na Justiça americana, o ônus da prova cabe à pessoa que se diz ofendida, difamada, caluniada. Os advogados do ofendido é que teriam que provar que houve ofensa, difamação, calúnia. Na justiça britânica, é o contrário: cabe ao réu, ao acusado, provar que não ofendeu, não difamou, não caluniou.
O tal David Irving, o negador do Holocausto, é tudo de ruim que pode haver. É um admirador de Adolf Hitler, um defensor do nazismo, um poço de racismo – mas não é burro. De forma alguma. Muito ao contrário. Por isso entrou com o processo de difamação contra a americana não na Justiça americana, e sim na inglesa.

O advogado foi o escolhido pela princesa Diana para fazer seu divórcio

Há um detalhe fascinante a respeito do advogado Anthony Julius. É um pequeno ponto suave, leve, até engraçado, creio que o único, neste drama sério, pesado, denso.
Na primeira conversa com Deborah, o advogado menciona Diana. Deborah demonstra que não entendeu muito bem o motivo da referência, e a conversa continua. Algum tempo depois, o advogado diz que é Diana, a princesa – e Deborah diz que sim, sabe que Diana é a princesa, mas não entendeu qual é a conexão. E só aí Anthony Julius diz (ele provavelmente achava que todo o mundo sabia, que não era preciso repetir) que ele foi o advogado de Diana em seu processo divórcio.
Deborah fica um tanto surpresa. Afinal, as referências eram de que ele era o melhor advogado inglês nos casos de difamação. Anthony Julius diz que argumentou com a princesa que divórcio não era a área dele – ao que ela respondeu algo tipo: Também não é a minha. É a primeira vez que divorcio!
Um advogado que é tido como o melhor da Inglaterra na área específica dos processos de difamação. E que foi o sujeito escolhido pela princesa Diana. Não há como não confiar nele.
Só que, quando o caso começa a andar na Justiça inglesa, e Deborah viaja para Londres, Anthony Julius diz que, na corte, ela será representada por outro advogado, o melhor que há nesse campo – Richard Rampton (o papel, repito, do grande Tom Wilkinson, na foto acima). E então explica para a sua cliente e também para o espectador, que na Inglaterra, há o solicitor e o barrister – são coisas diferentes.
Ah, a cultura inglesa…
O solicitor é o advogado que dá aconselhamento ao cliente. Que levanta os pontos legais que podem ser usados em defesa do cliente. O barrister é o advogado que faz a defesa do cliente nas cortes mais altas da Justiça. O nome vem de bar – a barra do tribunal, que separa as partes, defesa e promotoria, dos juízes. Nos países de língua inglesa, as Bar Associations são o correspondente ao que aqui é a Ordem dos Advogados.)

As sequências filmadas em Auschwitz foram feitas para emocionar, para fazer chorar

Filme intrinsecamente político, que discute ideias, conceitos que têm a ver com a política, Denial é também, como não poderia deixar de ser, um filme de tribunal. Boa parte dos seus 109 minutos se passa dentro do tribunal do honorável Sir Charles Gray (Alex Jennings), o juiz da mais alta corte inglesa para quem cai o processo de difamação movido pelo Sr. Negação do Holocausto em Pessoa.
Há um conjunto de sequências passadas em Auschwitz, nas ruínas do que foi o campo de concentração que é o maior símbolo do Holocausto, na Cracóvia, Polônia, então invadida e dominada pelos nazistas. Advogado de tribunal, acostumado com julgamentos de crimes, Richard Rampton faz questão de pedir uma viagem ao local exato, para examinar, ele mesmo, a cena do crime.
Viaja até a Polônia com Deborah Lipstadt e vários especialistas judeus em Holocausto, que conhecem todas as informações que foram reunidas ao longo das décadas sobre os campos de concentração.
Essas sequências passadas ali – e filmadas exatamente no local, hoje um santuário, oficialmente um Patrimônio da Humanidade – são feitas para emocionar. Foram planejadas para que a comunidade judaica que vir o filme, no mundo inteiro, se comova, se emocione, se arrepie, chore muito, cante cânticos.
Há, ali, imagens belíssimas. O diretor de fotografia Haris Zambarloukos, que, em várias sequências, opta por pouca iluminação, e apresenta imagens sombrias, nestas sequências capricha. É inverno, e a câmara mostra uma realidade quase toda em preto e branco – e, claro, muito cinza. Muita cinza.
Há super hiper big close ups de pingos d’água caindo dos arames farpados. Há super hiper big close ups do chão do local onde até 1945 havia os crematórios.
Quem não chorar muito nestas sequências não é um bom judeu.
Quanto a nós, os góis, é preciso respeitar a dor deles.
É preciso respeitar a dor de todos os seres humanos, sejam judeus ou góis, negros, pardos, brancos, vermelhos, amarelos, azuis, verdes – até porque ascendência, religião, cor de pele, nada dessas coisas tem a menor importância, ao fim e ao cabo, a rigor, quando a porca torce o rabo. A diferença que há entre as pessoas não passa nem de longe por aí – passa é pelo caráter, é pelo que elas fazem, pelo que elas sentem. A rigor, a rigor, a diferença é entre os bons e os maus. As pessoas boas e as pessoas ruins.
Para David Irving, um admirador do nazismo, um nazista, um racista, um mentiroso contumaz e tenaz, o que importa é promover o circo com a intenção de falsificar os fatos, a História.
Para Deborah Lipstadt, havia muita coisa em jogo: a sua própria reputação, como pessoa e como historiadora. Mas mais ainda que isso, a importância que tem necessariamente que ser dada ao Holocausto. Deborah é historiadora, mas é também, ou sobretudo, judia, e se acha obrigada a dar satisfação a seu povo, à sua comunidade.
Para os advogados que aceitaram defendê-la e à editora Penguin, tudo o que importa é vencer o caso.

É imensa a distância entre o que a ré deseja e o que seus advogado fazem

E esse é, talvez, o ponto mais fascinante deste belo filme: a distância entre o que a ré deseja e o que seus advogados fazem.
A americana mas sobretudo judia Deborah quer reafirmar ao mundo que houve o Holocausto, e que quem o nega é mentiroso, safado, racista, nazista.
Mas, na Justiça inglesa, os advogados precisam é provar que ela não cometeu ofensa, difamação, calúnia, quando expôs o tal David Irving como um racista, antissemita, mentiroso. Os advogados precisam provar que ela falou a verdade.
Durante todo o desenrolar do processo, Deborah está profundamente angustiada, sentindo-se tolhida, obrigada a não falar, não se expressar.
Os advogados têm uma estratégia apenas: vencer. Obter a sentença favorável.
A sensação de impotência de Deborah, sua angústia, sua dor vão aumentando a cada momento.
Rachel Weisz é uma bela atriz – o bela aí valendo para todos os sentidos da palavra. Está bem, muito bem, fazendo o papel da americana de Atlanta, Georgia, embora seja inglesérrima, de Londres, onde nasceu em 1970, o ano em que comecei no jornalismo.
Mas o brilho das interpretações está mesmo é nos dois gigantes, Tom Wilkinson e Timothy Spall.
O papel de Tom Wilkinson não é fácil. O advogado Richard Rampton é competente – o espectador percebe perfeitamente -, mas parece estranho, esquisito, não cede um milímetro aos apelos da jovem e bela mulher que, afinal de contas, é a ré no processo, é a cliente dele.
É uma interpretação soberba.
Mas é é a interpretação de Timothy Spall que rouba a cena.
É difícil fazer um vilão tão vilão quanto essa nazista David Irving.
Timothy Spall parece ter encarnado o mentiroso safado, negador do Holocausto. Até mesmo seu rosto ficou diferente do que ele aparece em tantos outros grandes filmes – Segredos e Mentiras (1996), Agora ou Nunca (2002), Ginger & Rosa (2012), Sr. Turner (2014), para citar só uns poucos.
Faz um dos personagens mais nojentos, mais abjetos, mais doentios que o cinema focalizou nos últimos anos com uma coragem e um talento fantásticos, impressionantes. (Na foto, Rachel Weisz com a historiadora Deborah Lipstadt, que ela interpreta no filme.)

Com os que querem usar a democracia para destruí-la, não tem conversa

Há um pequeno gesto, quando este Denial vai se aproximando do final, que pode dar o que pensar, o que falar, o que discutir.
Na verdade, é um pequeno gesto que tem tudo a ver com a base da argumentação de Deborah Liptatd – e, portanto, do próprio filme.
David Irving, o nazista, estende a mão a Richard Rampton, o advogado, o barrister – e este se recusa a estender a mão para o outro. Vira as costas e se distancia.
Creio que ali vai a moral da história, a moral do filme, o que os realizadores quiserem dizer.
Democracia, sim, claro, óbvio – sempre. Liberdade de expressão, respeito absoluto aos que pensam de forma diferente, oposta, o adversário – sim, claro, óbvio, sempre. Como é que é a frase do iluminismo francês, de Voltaire? Não concordo com nenhuma palavra do que você diz, mas respeitarei até a morte o seu direito de dizer. Claro, óbvio, perfeito. Beleza. Democracia, liberdade de expressão, respeito ao dessemelhante.
Mas não com o mentiroso. Não com o racista, o supremacista, o nazista, o totalitário.
Com esse aí não tem papo.
Com quem usa os instrumentos da democracia para acabar com ela não tem conversa. Tem só o rigor da lei.
Como vi o filme faltando apenas 15 dias para o primeiro turno da eleição presidencial de 2018, com dois candidatos extremistas, antidemocráticos, à frente nas pesquisas, me lembrei da frase de Winston Churchill: “Se Hitler invadir o inferno, eu me alio com o diabo!”.
Contra os extremistas, deve-se aliar até com o diabo.
Anotação em setembro de 2018
Negação/Denial
De Mick Jackson, Inglaterra-EUA, 2016
Com Rachel Weisz (Deborah Lipstadt), Tom Wilkinson (Richard Rampton), Timothy Spall (David Irving), Andrew Scott (Anthony Julius), Jack Lowden (James Libson), Caren Pistorius (Laura Tyler), Alex Jennings (Sir Charles Gray), Harriet Walter (Vera Reich), Mark Gatiss (Prof. Robert Jan Van Pelt), John Sessions (Prof. Richard Evans), Nikki Amuka-Bird (Libby Holbrook), Pip Carter (Anthony Forbes-Watson), Jackie Clune (Heather Rogers), Will Attenborough (Thomas Skelton-Robinson), Max Befort (Nik Wachsman)
Roteiro David Hare
Baseado no livro History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier, de Deborah E. Lipstadt
Fotografia Haris Zambarloukos
Música Howard Shore
Mongagem Justine Wright
Casting Dixie Chassay
Produção BBC Films, Krasnoff / Foster Entertainment, Participant Media,
Shoebox Films.
Distributors
Cor, 109 min (1h49)
***
Título na França: Le Procès du Siècle.

O Boletim

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *