29 de março de 2024
Fernando Gabeira

Reflexões na casa de Gorki


Depois de tanto bater perna para documentar a variada arquitetura russa, acabei na casa em que o escritor Maximo Gorki viveu seus últimos cinco anos.
O que me atraía nela era seu status de documento sobre a art noveau na Rússia. Milionários cansados de palácios queriam novidades. Ela foi construída em 1900, projetada pelo arquiteto Fyodor Shekhtel. Sua escada em mármore cinzenta imitando a onda do mar é um dos traços mais interessantes. Uma vez dentro da casa, entretanto, deixei de lado a arquitetura e pensei em Gorki.
Os documentos à disposição, em vários idiomas, me levaram a concluir que havia um certo mal-estar de Gorki naquele monumento arquitetônico que lhe foi dado por Stálin e expropriado de um milionário. E não era um mal- estar físico, apenas por causa da escadaria. Gorki sentia dores no peito e já estava, realmente, no fim da vida, embora trabalhasse com disciplina.
Era algo ideológico. Apareceu para mim, num diálogo entre um admirador e Gorki:
— Agora, com essa mansão, você não precisa mais ir para sua casa na Itália.
— Não tenho casa na Itália. Não tenho e nunca terei casa própria.
Em outro momento, mais revelador ainda, o conviva de um jantar na mansão ergueu um brinde ao dono da casa.
Gorki ficou lívido e disse:
— Não sou o dono da casa, ela pertence aos soviets.
Alguém com uma visão maliciosa interpretaria isso como o clássico “essa casa não é minha, é do amigo Stálin”.
Mas há um sinal de sinceridade quando se visita o quarto de Gorki. É bem simples, com uma cama de solteiro, um copo de água numa das mesinhas de cabeceira e a foto de sua neta Maria na outra. O único traço mais luxuoso é uma pequena escultura japonesa. Essa simplicidade autoriza a pensar que Gorki era bem mais austero que a mansão art noveau.
Não pude visitar a casa de Tolstói em Iasnaia Poliana, embora me sentisse atraído também pela sonoridade do nome. Mas pensei nele porque, apesar de estar num espaço ideológico diferente, Tolstoi admirava os camponeses, queria viver como eles. Inclusive trabalhava no campo e mostrava aos amigos como estava familiarizado com aquela rotina.
Ele tinha essa tendência dos populistas que viam nos camponeses o pulsar da verdadeira alma russa. Populistas na história da Rússia não eram picaretas, não confundi-los com os assim denominados no Brasil. Mas Tolstoi também vivia uma forte contradição. Deixava seu trabalho no campo e ia para casa jantar, onde o esperavam servos uniformizados para atendê-lo.
O que me ocorreu na casa de Gorki é uma especial divisão de trabalho no mundo comunista. Aos escritores parece tocar o capítulo “crise de consciência”, porque os dirigentes mesmo estavam pouco se importando em viver num nível muito acima das pessoas comuns, que se espremiam em moradas coletivas.
Mesmo agora, os líderes de esquerda no Brasil não diriam como Gorki, que não teriam jamais uma casa própria. Os processos penais indicam precisamente que parte de seu esforço foi adquirir sítios, casas de praia, apartamentos.
Não foi a ideologia que os conteve, mas a ação policial. Ao deixar a casa de Gorki, saio confuso sobre o papel dos escritores: ingênuos, cúmplices ou apenas seres dilacerados pelas contradições?
Gorki ajudou muitos artistas em dificuldades com o sistema. Tolstói, por sua vez, era quase um santo para milhares de pessoas.
Enfim, não se deve visitar museu sem contratar um guia. Ficam muitas questões no ar.



Artigo publicado no Globo em 09./07/2018
Fonte: Blog do Gabeira

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

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