23 de abril de 2024
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Uma canção para 2018


Tenho toda a dificuldade do mundo de escrever textos públicos em primeira pessoa. Sou do tipo que se sente muito mais confortável escrevendo “está faltando poesia no mundo” do que escrever “eu sinto falta de poesia no mundo”. Mas, como é feriado universal e o dia internacional da ressaca brava, vou apostar na possibilidade de que aqueles que me lerem hoje estarão menos exigentes. Escreverei de um jeito mais confessional.
Em 1985 eu era jovem, já era mãe e fui fazer a redação do Vestibular para a Escola Baiana de Medicina. Talvez pelo fato de, naquela época, a prova do curso de Medicina da Baiana ser a mesma do Vestibular da Universidade Católica de Salvador, o tema da redação era a frase de um padre cantor, uma espécie de versão não guapo dos padres galãs-gatos erotizados de hoje. O tema da redação era: “Os jovens de hoje não são nem melhores nem piores que os de ontem. Estão apenas respondendo de forma diferente a problemas um tanto quanto parecidos com os de antigamente”. A frase é do Padre Zezinho. Será que isso vale para além do clichê?
Vida bandida
Penso agora na minha redação de Vestibular da década de 80, em um tempo em que eu mantinha corticalizados em mim os sons e as letras do Cure, do Doors, do Smiths, a Vida Bandida de Lobão, as letras e as melodias gigantescas de Renato Russo (que poetizava a política e politizava os afetos), a genialidade ácida de Cazuza e, intensamente, o assombro de toda a riqueza poética, todo o talento e toda a atemporalidade de Gil, Caetano, Chico e mais tanta gente que estava lá e ainda está gigante hoje. Conectada que me obrigo a ser, ouço agora de um tudo, incluindo os fenômenos musicais dos cachês estratosféricos, dos stories, dos lives, dos likes, das views, dos seguidores, dos compartilhamentos e dos lacres. E me pergunto: qual será a trilha sonora do futuro da vida dos jovens de agora?
Não me refiro à trilha para dançar, para festas, para ouvir nos headphones nas academias ou enquanto se pedala ou corre. Mas da que empacota nossas lembranças mais caras, nossos sentimentos mais complexos, aqueles que temos em certos momentos dificuldade de acessar, futucar, digerir. E tem coisa melhor e mais bela para tratar e acomodar ou servir de embalagem para as vísceras mais expostas dos nossos sentimentos que a música, em letra e melodia?
126 cabides
Ouvindo tanto e lendo tanto sobre as músicas “lacradoras”, mesmo sabendo que elas traduzem um tempo, um jovem, um modo e um lugar de estar no mundo, sinto falta de gente que chegou há pouco e que traga na bagagem algum repertório que traduza um pouco que seja os milhões de eu líricos que cada um de nós carrega lá dentro. Alguém que nos ajude a empacotar melodicamente sentimentos para além do rebolado, da vontade de ver a novinha passar empoderada, para além dos mantras “vai malandra” ou “vai, Safadão”. Será que os corações partidos da geração de hoje poderão viajar no tempo lírico traduzindo seus estados emocionais internos referentes a um amor rasgado ou partido emocionando-se ao som de 126 Cabides? Feliz 2018 e que ele nos traga, a cada um, uma canção que caiba em nossas trilhas dos amanhãs.

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