18 de abril de 2024
Walter Navarro

A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo

Você conhecem minha música favorita do Caetano Veloso? É “Pecado Original” e foi música tema, trilha sonora do filme “campeão de audiência” – 6,5 milhões de espectadores – “A Dama do Lotação” (1978), de Neville D´Almeida, com uma Sônia Braga vivendo personagem das mais devassas, mas reais de Nelson Rodrigues.

Saquem o resumo da ópera: “Solange e Carlos se conhecem desde a infância e se casam. Na noite de núpcias, Solange resiste ao seu marido, que, impaciente, acaba estuprando-a. Solange fica traumatizada e, apesar de desejar Carlos, não quer mais nada com ele. Para se satisfazer, ela começa a fazer sexo com homens que não conhece, que encontra andando de lotação (espécie de micro-ônibus que faz transporte público)”.

Música linda, arranjo perfeito, voz impecável, letra inteligente e perigosa, como as boas coisas e mulheres da vida. Tem versos enigmáticos que ainda não entendi.

Por exemplo, por que a citação do sucesso de Waldick Soriano, “Eu não sou cachorro não”? Simples, quando se sabe. Entrevistei Neville D´Almeida, no Rio de Janeiro, acho que em 2000, para a revista “Palavra”. A entrevista não foi publicada, mas esta é outra longa história…

Comentei com Neville sobre a música e ele me contou uma ótima; de como “Eu não sou cachorro não” entrou no meio da música. Disse-me ele que Caetano Veloso, antes de compor, ligou para Nelson Rodrigues e perguntou qual sua música favorita. De bate pronto, Nelson, respondeu com sua voz roufenha: “Gosto muito daquela música do Waldick….”.

“Pecado Original” começa assim: “Todo dia, toda noite, toda hora, toda madrugada, momento e manhã. Todo mundo, todos os segundos do minuto vivem a eternidade da maçã”.

Maçã e pecado original tem tudo a ver. Mas por que eternidade da maçã?

“Tempo da serpente nossa irmã, sonho de ter uma vida sã. Quando a gente volta o rosto para o céu e diz olhos nos olhos da imensidão: Eu não sou cachorro não!”.

Olhem aí o cachorro doido… Agora, meu verso favorito, título desta crônica: “A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo”. A gente e muita gente mais… O desejo… Isso não dá uma crônica, dá uma enciclopédia…

“Todo beijo, todo medo, todo corpo em movimento está cheio de inferno e céu. Todo santo, todo canto, todo pranto, todo manto está cheio de inferno e céu. O que fazer com o que Deus nos deu? O que foi que nos aconteceu?”.

O que foi que nos aconteceu? Pensem na Rosa de Hiroshima, na Ucrânia, Israel e Palestina.

“Quando a gente volta o rosto para o céu e diz olhos nos olhos da imensidão: Eu não sou cachorro não! A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo. Todo homem, todo lobisomem sabe a imensidão da fome que tem de viver. Todo homem sabe que essa fome é mesmo grande até maior que o medo de morrer. Mas a gente nunca sabe mesmo o que quer uma mulher”.

O que quer a mulher? Desejo, poder, foder, morrer? Nem Freud explicou isso. Você dá a mão, elas querem o pau, quer dizer, o pé. O mesmo Freud disse que o homem só não consegue ver três coisas de frente: “O sol, a morte e o sexo da mulher”. Há controvérsias. Em sol e morte, realmente, não sou muito chegado…

Acho que o problema, não é saber onde colocar o desejo, mas colocar bem, acertar o alvo. De que adianta ter desejo, colocar no lugar certo e não ser retribuído ou reembolsado?

Termino com esta citação de João Ubaldo Ribeiro: “Em tese, somos capazes de nos apaixonar por tantas pessoas quantas sejamos capazes de lembrar, o limite é este, não um ou dois, ou três, ou quatro, ou cinco, ou dezessete, todos esses números são arbitrários, tirânicos e opressores.”

PS: Volto depois, na crônica de número 100, para contar sobre outras coisas que não sei, nem depois de assistir ao Globo Repórter. Beijos.

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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