18 de abril de 2024
Sergio Vaz

O Caso Farewell / L’Affaire Farewell

De: Christian Carion, França, 2009

Nota: ★★★½
Como alguns outros grandes realizadores antes dele – John Huston, Otto Preminger, Erich von Stroheim, para citar só alguns –, o sérvio Emir Kusturica gosta de se aventurar como ator. E, como os três citados, quando faz isso, brilha. A interpretação de Emir Kusturica neste L’Affaire Farewell é magnífica, fantástica, extraordinária.
Ele interpreta Serguei Grigoriev, um coronel da KGB que, em 1981, procura um engenheiro francês que trabalha em Moscou para entregar dados sigilosíssimos do serviço de informações da União Soviética. E, a partir do primeiro encontro – mostrado quando o filme ainda não tem nem 5 minutos –, passa a entregar mais e mais informações, cada vez mais importantes, cada vez mais vitais.
Entre as informações que ele passa para o Ocidente estão os nomes dos cidadãos americanos, britânicos, franceses e de outros países europeus que trabalham como espiões para a União Soviética. Gente que está espalhada por importantes órgãos dos governos dos países ocidentais.
Repassadas para a DST, Direction de la Surveillance du Territoire, o serviço secreto francês, as informações serão levadas pelo diretor dessa agência diretamente às mãos do presidente François Mitterrand (interpretado por Philippe Magnan). Que, por sua vez, as repassará pessoalmente para o presidente Ronald Reagan (interpretado por Fred Ward).
Um coronel da KGB que trai a União Soviética!
Um traidor, então. Um Judas, um Silvério dos Reis, um Calabar. Um desqualificado, uma figura abjeta, um mau caráter.
Pode ser – dependendo da posição de quem vê.
O que para uns é um traidor para outros pode ser um herói.

“Eu não fujo. Meu país precisa de mim. Eu posso mudar o mundo.”

No primeiro encontro de Grigoriev com o engenheiro francês Pierre Froment (o papel de Guillaume Canet), este diz a ele que conversou com seu chefe, o diretor das operações de grande empresa francesa em Moscou, Jacques (Marc Berman), e este informou que todas as embaixadas francesas na Europa estão prontas para receber o oficial soviético e sua família.
Grigoriev protesta com firmeza: – “Eu não quero fugir. Este é o meu país”.
O Serguei Grigoriev que Emir Kusturica construiu neste belo filme do diretor Christian Carion é um sujeito forte, grande, determinado, tenaz, persistente. É também um homem letrado; tendo tido a oportunidade de viver uma temporada em Paris, nos anos 60, ainda tenente, servindo na embaixada soviética na França, apaixonou-se pela língua e pela cultura do país. Ama profundamente as canções de Léo Ferré (1916-1993), os poemas dos grandes todos. Recita de cor o longo poema “La Mort du Loup”, de Alfred de Vigny. (Naquele primeiro encontro, Pierre se dirige a ele em russo, e Grigoriev pede para falarem em francês. Mais tarde, explicará ao engenheiro que aquela é a única oportunidade que ele tem de falar a língua estrangeira.)
O Serguei Grigoriev que o roteirista Eric Raynaud, o diretor Christian Carion e a atuação de Kusturica criaram não se considera, de forma alguma, um traidor. É um patriota, um oficial do Exército profundamente apaixonado pela Rússia, que quer ajudar a mudar o curso da História, livrar a pátria de um governo e um regime incompetentes e ditadoriais, para que seu filho possa ter uma vida digna no futuro.
Naquele primeiro diálogo com o jovem francês, ele é bastante claro: – “Eu não fujo como todos os outros. Eles são patéticos. Não tenho medo de morrer. Meu país precisa de mim. Eu posso mudar o mundo.”
O filme o apresenta como um homem às vezes conturbado, às vezes um tanto irresponsável – ele age com extrema segurança, parecendo estar descuidado, justamente ele, um oficial da KGB, que sabe que há espiões, informantes, em absolutamente todas as esquinas – , mas sempre forte, sempre firme em seus propósitos.
Seu país precisa dele. E ele pode mudar o mundo.
Não é um covarde, nem um traidor. A rigor, é um herói.

O filme conta, com muitas licenças poéticas, uma história real

O filme abre com uma sequência de imagens reais, de cinejornalismo, todas emblemáticas dos anos da Guerra Fria, enquanto vão rolando os nomes das diversas empresas envolvidas na produção. Não chegam a ser propriamente créditos iniciais – são mostrados ali apenas os nomes das produtoras, enquanto vemos, sobre o fundo de uma bandeira soviética, um cosmonauta russo, um foguete sendo lançado, Brejnev e os principais dirigentes da URSS no grande camarote para assistir a um desfile militar, os militares desfilando, um cartaz gigantesco com uma foto de Lênin, o astronauta americano andando na Lua, ogivas sendo lançadas.
Surge o letreiro: “Este filme se inspira livremente em fatos reais que contribuíram para a queda do bloco soviético, pondo fim a um mundo dominado por duas potências opostas”.
Sim: o filme conta uma história real – ainda que com muitas licenças poéticas, algumas simplificações, talvez alguns adendos para arredondar a narrativa. Serguei Grigoriev é um nome fictício, falso, criado pelos realizadores do filme, mas o personagem se inspira em Vladimir Ippolitovitch Vetrov
Vladimir Ippolitvovitch Vetrov nasceu em Moscou, em 1932, já, portanto, na Era Stálin. Vinha de uma família modesta – o pai era contramestre, e a mãe, quase iletrada, trabalhava como arrumadeira. Aluno aplicado, esforçado, mostrou-se brilhante na escola de engenharia e se especializou em mecânica. Logo atraiu a atenção dos sargentos recrutadores da KGB, e passou por longo e intensivo treinamento na central de espionagem do regime, aprendendo também inglês e francês.
Em 1965, foi designado para a embaixada da União Soviética em Paris.
No início dos anos 80, já no período Brejnev, era tenente-coronel da KGB, responsável pela seção da Europa Ocidental. Foi quando passou a entregar informações valiosíssimas para a DST francesa.
Consta na Wikipedia em francês que o então presidente Ronald Reagan definiu a operação Farewell (esse foi o nome de código dado a Vetrov pela DST) como “o maior caso de espionagem do século XX”. O historiador Marc Ferro disse – assim como o letreiro que abre a narrativa – que essa história contribuiu para a queda da URSS. (Na foto abaixo, Fred Ward como Reagan.)

Um ano antes deste filme, foi lançado um documentário sobre o caso

A história de Vladimir Ippolitvovitch Vetrov foi contada em um documentário lançado em 2008, L’affaire Farewell, l’espion de la vengeance, dirigido por Jean-François Delassus. O documentário mostra imagens reais de François Mitterrand, Ronald Reagan e também de Mikhail Gorbachev, que já era o secretário-geral do comitê central do PCURSS quando Vetrov foi descoberto, identificado, preso e torturado pela KGB, em 1985.
O documentário ouviu também várias pessoas que tiveram algum tipo de participação no caso Farewell – ex-agentes dos serviços secretos da União Soviética, dos Estados Unidos e da França. Deve certamente ser um trabalho fascinante; gostaria demais de ver esse documentário algum dia.
Lançado em 2009, o filme do diretor Christian Carion muito provavelmente já estava em fase de pré-produção quando o documentário sobre a mesma história foi exibido nos cinemas da França. Ainda bem que os produtores e realizadores não desistiram de fazê-lo. É um belo filme – e, para quem se interessa por História, é fundamental.
O roteirista Eric Raynaud deve ter seguramente visto e revisto o documentário, além de ter feito pesquisas em jornais e revistas. Nos créditos finais, é dito que o roteiro se baseou no livro Bonjour, Farewell: La vérité sur la taupe française du KGB, de Serguei Kostine.

Forçado a trabalhar como espião, o engenheiro francês vê seu casamento ameaçado

O roteirista e o diretor Carion fizeram questão de se aprofundar nas vidas pessoais dos dois personagens centrais da história – o coronel russo Serguei Grigoriev e o engenheiro francês Pierre Froment, os papéis, repito, de Emir Kusturica e Guillaume Canet. Uma decisão muito acertada. O filme evita assim ficar na aridez da trama política, de espionagem.
Pierre Froment tinha uma vida tranquila em Moscou, com a bela mulher, Jessica (a romena Alexandra Maria Lara), e os dois filhinhos, uma garota aí de uns 10 anos e um menino de uns 7. Viviam num bom apartamento, numa área reservada para o pessoal francês do corpo consular e os altos funcionários de empresas francesas sediadas em Moscou.
Jessica tinha nascido na Alemanha Oriental, a RDA. Mas nenhum dos dois parecia ter qualquer envolvimento com política, ideologia. Nem pareciam se importar muito em viver em um ditadura férrea, sem liberdade de imprensa, de opinião e de qualquer outro tipo. Talvez por serem estrangeiros, por Pierre trabalhar em empresa estrangeira, não sentiam as limitações óbvias que os cidadãos russos enfrentavam.
Na primeira sequência em que a família é mostrada, Jessica reclama que Olga (Irina Augshkap), a empregada doméstica, sempre mexe em seus papéis – mas é apenas um pequeno incômodo, ao qual nem ela mesma nem o marido dão muita importância.
Mais tarde, bem mais tarde, o casal e os espectadores ficam sabendo o óbvio: Olga é, sim, informante da KGB.
O filme deixa claríssimo que Pierre não queria aquele papel de contato com o oficial soviético delator de segredos importantíssimos do governo. Entrou de gaiato na história, como se diz no Português das ruas brasileiras. Seu chefe na empresa, Jacques, pediu a ele o favor de se encontrar um dia com um oficial russo que ele, Jacques, conhecia bem – e então aconteceu aquele primeiro encontro, mostrado bem no início do filme. Naquela altura, Pierre sequer tinha noção de que Jacques era informante da DST.
Ele tentará diversas vezes sair daquela posição de contato com Grigoriev – mas não consegue escapar.
É forçado a esconder de Jessica o que está acontecendo. Quando Jessica descobre que o relacionamento do marido com o oficial soviético continua, ameaça se separar.
Acabará se tornando amigo e admirador do oficial russo que surgiu em sua vida sem ser convidado e ameaça estragar seu casamento.

Quando a mulher rompe com o amante dela, ressurge na vida do coronel uma velha paixão

A vida pessoal de Grigoriev também está bastante enrolada. Bem mais ainda do que a do engenheiro francês.
Vai de mal a pior sua relação com o filho único, Igor (Yevgeni Kharlanov), um adolescente rebelde, fã de música ocidental,ee rock, que é repreendido na escola por falar mal de Brejnev. Mas você não diz sempre que ele é um idiota?, o rapaz questiona, quando o pai vai conversar com ele sobre o caso. Sim, mas aqui dentro de casa, replica o pai – mas é difícil passar essa noção para um adolescente rebelde.
Grigoriev está traindo o governo que paga seu salário para que Igor tenha uma vida melhor – e no entanto mal consegue se comunicar com o filho. Eis aí uma situação limite, absurda – e a interpretação de Emir Kusturica é um esplendor como aquele homem que sofre num silêncio doído por estar perdendo o contato com o filho que revê sem parar nos velhos filmes super 8 de quando Igor era criancinha.
Grigoriev não sabe de nada, mas o espectador, se for bem atento, perceberá: Natasha (Ingeborga Dapkunaite, na foto acima), sua bela mulher, teve um caso, e justamente com Choukhov (Oleksiy Gorbunov), o chefe dele na KGB, homem que ele despreza profundamente.
E, justamente num momento da vida deles em que Natasha está rompendo o caso com Choukhov, porque ama o marido e o filho, e não quer magoá-los, Grigoriev está se reencontrando com uma antiga paixão, Alina (Dina Korzun), mulher fogosa, incendiária.
É bem possível que parte dessas histórias pessoais tenha sido romanceada pelo roteirista Eric Raynaud. Não faz mal algum. As tensões dos dois protagonistas da história em suas vidas particulares ajudam este L’Affaire Farewell a ser um grande filme.

Um diretor de poucos filmes, três deles inspirados em fatos reais

Christian Carion é um diretor de poucos filmes. Nos 16 anos entre 1999 e 2015, fez apenas 5 filmes – e o primeiro deles foi um curta-metragem. Quatro longas, em 16 anos.
Vi o primeiro longa deles, Encontro Inesperado/Une Hirondelle a Fait le Printemps (2001), embora não tenha na época escrito nada sobre o filme, além de registrar que o tinha visto. É um drama suave sobre uma jovem parisiense (interpretada pela bela Mathilde Seigner) que resolve mudar tudo na vida e compra uma fazenda distante de qualquer grande cidade, e sua relação com o dono anterior da propriedade, um velho interpretado por Michel Serrault.
Depois desse filme de título fascinante (“uma andorinha fez uma primavera” parece um verso inspirado de um bom poeta), fez três filmes baseados ou inspirados em fatos históricos. Feliz Natal/Joyeux Noël (2005) é uma obra-prima de se aplaudir de pé como na ópera, sobre um acontecimento fantástico ocorrido na Primeira Guerra Mundial, quando soldados franceses e escoceses de um lado e alemães de outro saíram de suas trincheiras e comemoraram juntos o Natal.
Quatro anos depois daquela maravilha veio este L’Affaire Farewell, de 2009. E, em 2015, lançou Viva a França!/En Mai, Fait Ce Qu’il te Plais, ou em maio faça o que você está a fim, uma história passada em maio de 1940, quando toda a população de uma pequena cidade do Norte francês a abandona, pouco antes da chegada dos invasores nazistas.
Que continue fazendo seus belos filmes, mesmo que com grandes intervalos entre um e outro.

Os dois principais atores, Canet e Kusturica, são também realizadores

É fascinante notar que não apenas um, mas os dois principais atores de L’Affaire Farewell são também realizadores. Claro, Emir Kusturica tem mais fama, e mais tempo na estrada. Sua filmografia como diretor começa em 1978, e tem 20 títulos – embora o número inclua série de TV, documentários e curtas. Mas nada menos que cinco de seus filmes já concorreram no Festival de Cannes, e ele já levou duas Palmas de Ouro, por Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (1985) e Underground (1995).
Guillaume Canet é da geração da minha filha, nasceu em 1973, enquanto Kusturica é da minha geração – nasceu em Sarajevo em 1954. Mas Canet já tem 10 títulos na filmografia, que inclui ao menos dois belos filmes, Não Conte a Ninguém/Ne Le Dis à Personne (2006) e Até a Eternidade/Les Petits Mouchoirs (2010).
É também fascinante pensar que Emir Kusturica, esse realizador inquieto, rebelde, com cara e jeito de roqueiro (bem, ele de fato toca baixo numa banda de rock chamada Zabranjeno Pusenje, que significa “proibido fumar”) deu uma Palma de Ouro ao cinema da Iugoslávia, a república comunista que só a liderança do Marechal Tito manteve unida, e que implodiu na passagem dos anos 80 para 90 numa guerra civil bárbara, sangrenta, absurda.
Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios – que, além de levar a Palma de Ouro em Cannes, teve ainda indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro –, era uma obra subversiva. Extremamente subversiva: denunciava o totalitarismo comunista, as prisões arbitrárias, a atmosfera de total falta de liberdade, em que familiares deduravam familiares que ousavam falar alguma frase contra o governo, o Partido, o todo-poderoso Marechal Tito, o todo-poderoso grão-imperador do Império Comunista Europeu Josef Stálin.
Emir Kusturica fez um filme anti-ditadura em plena Iugoslávia da ditadura comunista. Depois disso, interpretar um oficial soviético que trai o governo em nome da pátria é moleza.
“Ao contrário da maior parte dos thrillers e filmes de espionagem, havia no roteiro (de L’Affaire Farewell) uma dimensão humana e uma espiritualidade que me tocaram”, disse o realizador, numa entrevista citada no site AlloCiné, que tem tudo sobre os filmes franceses. “É muito raro que proponham a você um thriller que dê tanta importância à parte individual do ser humano.”
Quem haveria de contradizer Emir Kusturica?

Lá pelas tantas, uma homenagem ao mestre John Ford

Este texto falou de grandes realizadores – John Huston, Otto Preminger, Erich von Stroheim, Emir Kusturica – e também de talentosos realizadores mais novos – Christian Carion e Guillaume Canet. Faltou falar de um dos maiores de todos, John Ford.
Há duas sequências do filme que mostram o ex-ator Ronald Reagan em momento de lazer na Casa Branca vendo e revendo O Homem Que Matou o Facínora (1962), uma das obras-primas de John Ford.
Muitíssimo bem escolhido o filme que Reagan vê na Casa Branca. É bastante provável que o velho canastrão gostasse mesmo de rever aquele maravilhoso western, nos seus momentos de folga.
E também porque The Man Who Shot Liberty Valence trata exatamente dessa coisa de covardia x heroísmo, os dois lados da mesma moeda, da mesma história. Exatamente o tema de L’Affaire Farewell.

O Boletim

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *