20 de abril de 2024
Walter Navarro

Arquitetura insana


Como cantaria o Chico Buarque: no palco, na praça, no circo, num banco de jardim, correndo no escuro, pichado no muro, debaixo da ponte, cantando, por baixo da terra, cantando na boca do povo. Consta nos astros, nos signos, nos búzios, eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás. Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas. Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos dados oficiais. A ciência provou e o calendário confirmou.
O destino insistiu rimando com os astros, os autos, os signos, os dogmas, os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos, profetas, sinopses, espelhos, conselhos o evangelho e todos os mesmos orixás. Consta na pauta, no Karma, na carne, passou na novela, está no seguro, picharam no muro, mandei fazer um cartaz. Consta nos mapas, nos lábios, nos lápis, nos ovnis, no Pravda e na vodca que o assunto das mesas de bar, das salas de visita, da semana e do mês é a 4ª Conferência de Política Urbana, em Belo Horizonte, até o final deste maio de 2014.
Pode? Mas antes, gostaria de escrever que citei o mesmo Chico Buarque eleitor do PT até hoje por causa do pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, um dos fundadores do partido, que hoje deve estar se remoendo e revirando no túmulo de tanta vergonha e arrependimento. O mesmo Chico Buarque que tanto cantou Cuba e hoje nem lembra mais porque ficou rico e descobriu Paris, onde tem apartamento no chique bairro do Marais pra passar seu aniversário, 19 de junho e os fins de ano.
Assim com tem gente inteligente que ainda fuma, tem gente inteligente que ainda vota no PT, só de picardia, só pra chatear.
Volto ao tema de mil polêmicas à vista, sempre girando em torno da verticalização da cidade, do trânsito caótico, das ruas, avenidas e garagens lotadas de carros.
Ao lado disso, a falta de obras (viadutos, trincheiras, etc.), de ônibus, trens e metrô em quantidade e qualidade.
Resumamos a ópera bufa. Pesa contra Belo Horizonte sua recente e incontrolável urbanização. Como toda cidade grande, ainda que jovem, ela não foi projetada para tantos automóveis, parados, estacionados ou circulando.
O convívio está complicado. As ruas são as mesmas, o volume de carros cada vez maior. O pomo da discórdia é a Outorga do Direito de Construir (ODC) “onerosa” ou “gratuita”. Mui resumidamente, outorga é igual licença; onerosa é “money”.
Trocando em miúdos, quem quiser construir prédios maiores, com mais apartamentos e mais vagas na garagem, vai pagar mais. Não é uma proibição, mas os grandes empreendimentos terão que absorver os impactos causados pela sua implantação; sejam eles de circulação, mobilidade ou infraestrutura (luz, água, esgotos, serviços públicos de limpeza e coleta de lixo, saúde, educação, habitação social etc.).
E vai adiantar nada porque o buraco, literalmente, é mais embaixo. Porque no Brasil, pra variar, os fins vêm antes do meio. Criam-se leis, mas não os meios para cumpri-las. As mesmas pequenas ruas, por exemplo, que antes tinham dez casas, hoje tem dez prédios, com muito mais moradores e carros.
Alguém já pensou em aposentar, trocar a faixa azul das ruas por prédios/garagem? Quem manda no Brasil – bancos e indústria automobilística – vai parar de financiar e de produzir carros? O brasileiro vai abandonar seu “amor e vício” pelos automóveis; trabalhar, estudar, se divertir, sair de casa usando nossos péssimos ônibus, trens e metrô tão prometidos como invisíveis? Sincera e lucidamente, sem transporte coletivo de qualidade não há solução.
Nossas grandes cidades não são Nova York, a Paris do Chico Buarque, Londres ou Tóquio. Nesta última, por exemplo, ninguém liga em morar longe do trabalho porque os trens são rápidos e infinitos. O metrô de Londres tem 150 anos, o de Nova York, parece, é o maior do mundo, em linhas, extensão. O de Buenos Aires também é secular. Em Paris, a maioria dos prédios – todos muito antigos – não tem garagem; lá tem metrô, trens e ônibus de qualidade; a classe média tem um carro por família, o mesmo carro que dorme na rua, garantido pela segurança que, se não é a ideal e perfeita, é bem maior que a brasileira. Pobre do carro que dorme na rua aqui.
PS: Por estas e mui outras, desde 2001 não dirijo mais, minha carteira venceu em 2002 e vai continuar assim. Sorte eu ter duas pernas e R$ 10 pro táxi, à noite.

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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