Uma charge publicada sexta-feira na edição impressa do jornal inglês The Guardian incomodou profundamente o arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani Tempesta. Ilustrando uma reportagem de três páginas sobre a violência e a corrupção no Brasil e perguntando se os desvios de recursos investigados na Operação Lava são o maior escândalo de corrupção da história, estava uma imagem do Cristo Redentor, no escuro, tendo numa mão um revólver e na outra um saco de dinheiro de onde voavam algumas cédulas. Para o arcebispo, o Guardian desrespeitou os brasileiros, uma fé e os cristãos.
Foto: Reprodução
Quem sou eu na fila do pão para dizer que o Dom Orani exagerou na intensidade do incômodo ou que subestimou a contribuição que o próprio país e o próprio Rio de Janeiro deram ao chargista. Mas que a charge é uma tradução do Rio, é. E já que é para discordar do arcebispo, que seja em gênero, número e grau: só estrangeiros, cariocas e fluminenses acham que o Cristo Redentor é sinônimo de representação do Brasil. Como se diz na Bahia: “aonde”? Pergunte a um paraibano, um sertanejo nordestino, um gaúcho, um caboclo, um ogã de baiano ou a um devoto do Senhor do Bonfim, se é a imagem daquele Cristo Redentor de cimento que ilumina a Baía de Guanabara que o representa? Não é não, Cardeal.
AGACHADO – “Estranho o teu Cristo, Rio/Que olha tão longe, além/Com os braços sempre abertos/Mas sem proteger ninguém”. Os versos de Cazuza, já traduziam lá nos anos 80 a impotência do Cristo carioca construído e que não consegue proteger nem mesmo o arcebispo que condena a charge. O próprio já foi alvo de três episódios de violência veiculados em todo o mundo. Em um deles, bandidos lhe levaram o carro. No outro, lhe tomaram cordão de ouro, crucifixo e outros objetos religiosos. No ano passado, imagens de TV mostraram Dom Orani agachado no chão, entre uma parede e um poste, protegendo-se das balas em um tiroteio. Num país, num estado, numa cidade onde acontecem cenas dessa natureza e o último ex-governador achava por bem roubar bilhões e presentear sua mulher com joias que passavam de um milhão de reais, perdemos o direito à ofensa por uma charge que mais traduz que achincalha.
E mais: o Cristo Redentor é uma imagem santificada, sagrada ou só um cartão postal? Para infelicidade daqueles que compartilham a visão ofendida do Cardeal, a realidade, praticamente de modo simultâneo à queixa, despeja mundo afora uma imagem real de uma concretude silenciadora. Nada menos que 60 fuzis, avaliados no mercado do tráfico (para onde iriam) em mais de R$ 3,5 milhões, além de farta munição, foram apreendidos no Aeroporto do Galeão, camuflados dentro de aquecedores de piscinas e aparelhos de ar condicionado. A carga chegou de Miami, enviada por um brasileiro que lá vive, embora tenha, há anos, um pedido de prisão expedido, no Brasil, pela Justiça Federal da Bahia. O sujeito chama-se Frederick Barbieri, tem Green Card e é dono de empresas de fachada de importação e exportação lá e cá.
JABURU – A Polícia Civil do Rio, que fez a apreensão, estima que pelo menos 30 carregamentos semelhantes a esse entraram no Rio, da mesma forma, nos últimos anos. As armas são todas compradas legalmente nos Estados Unidos, mas chegam ao Brasil com a numeração raspada. Tudo coisa de última geração: fuzis AK-47 (russos), HK- G3 (alemães) e AR 10 (americanos). Se isso acontece no 4º mais movimentado aeroporto brasileiro por falta de condições de escanear todas as cargas, imaginemos o que não acontece nas chamadas fronteiras secas e molhadas (via embarcações marítimas e fluviais). Enquanto isso, parte da população range os dentes pedindo maioridade penal para encarcerar os aviõezinhos do tráfico da favela. Alguém acha mesmo que, com isso, vai impedir os fredericks da vida, ricamente instalados em Miami e em outros paraísos de emergentes do mundo, de armar os donos dos morros do Rio e as facções do Brasil inteiro?
Se o presidente da República não vê nada demais em receber clandestinamente um empresário que vai ao Palácio do Jaburu lhe falar de assuntos do subterrâneo da sanha capitalista de estado, por que uns poucos funcionários do controle de cargas, entre os tantos atuando nas aduanas dos aeroportos brasileiros, vão bancar os difíceis e impedir a entrada de cargas milionárias de armas para o tráfico? Com o dinheiro da corrupção esses sujeitos blindam os carros potentes que deve ter, eletrificam cercas nos condomínios de luxo onde moram e acham que está tudo certo. O crime compensa e o país mostra isso a ele todos os dias. Nem o dono americanizado dos fuzis do Galeão e nem os corruptos dos esquemas dos aeroportos moram nas favelas e nas quebradas. Quem vê o chão tremer e a vida indo embora a cada rajada de fuzil é a periferia, que não lê o Guardian e nem sabe das razões de tanto incômodo do Cardeal.
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